A atual novela das 9, Amor à Vida, tem de tudo um pouco. Tem vilão gay. Tem mocinhos gays. Tem mocinha boba. Tem criança perdida/encontrada/roubada/misturada/disputada. Tem a menina bonita doente. Tem o moço bonito malvado. Tem médica que mente, ex-chacrete que vende cachorro quente e periguete engraçada. E tem também uma gordinha recordista de clichês, o que não é pouco se a gente pensar que essa novela é tão cheia de clichês que dá até enjoo.
A personagem é Perséfone, interpretada por Fabiana Karla. A tal Perséfone é enfermeira, virgem, dirige um Fusca, veste roupas que provavelmente herdou da avó ou de uma tia bem velhinha e, mais que tudo, é carente. Daquele tipo de carência que sai pelos poros, escorre pelo rosto, mancha a gola da blusa e amarela qualquer tecido. A luta atual da moça é para perder a virgindade, o que tem se demonstrado uma tarefa absurdamente difícil. Ninguém quer a Perséfone, embora ela seja uma menina tão inteligente, generosa, simpática, carinhosa e alegre.
É difícil explicar para alguém que não sofra esse tipo de discriminação velada o quanto essa situação da personagem pode ser aterrorizante. É como se todos os seus traumas, todos os seus medos, fossem escancarados. Sabe? Como se você passasse os dias tentando se convencer de que os monstros que vivem embaixo da cama são coisa da sua imaginação e de repente alguém te mostrasse uma colmeia de monstros que vivem embaixo da cama de alguém que se parece muito com você.
O fato da Perséfone se dispor a cozinhar para o alvo de seu encantamento é muito revelador. O moço não a convida para jantar num lugar bonito, ela é que consegue convencê-lo a ir visitá-la. Então ela serve um prato com camarões, ele tem uma crise alérgica. Passado o susto, novo jantar, de novo na casa dela, e dessa vez nada de alergias. Só que o moço brocha antes mesmo de tirar a roupa. Mas ela não desiste, e no dia seguinte vai lá convidá-lo de novo para jantar. Então ele diz que ela não leve a mal, mas que pra ele, tem que ter amor… que ela é gente boa, claro que ele gosta dela, mas que tem que ter aquele tchammm… e não tem.
Acho que o grande problema na situação toda, para mim, é o fato de que o autor não dotou a personagem das emoções típicas de uma mulher. Ela não se apaixona pelos sujeitos, ela quer apenas perder a virgindade com eles. Até por isso, as rejeições que sofre não lhe trazem aquela tristeza aguda,ou alguma raiva que a faça ofender alguém. A Perséfone é rasa e sempre disposta a continuar tentando, sem nunca realmente acusar os golpes, sem nunca se abater pelos tocos que leva sem nenhuma piedade. Ela continua sorrindo, continua boazinha, continua carente.
As reclamações a respeito da postura da personagem já andam circulando por ai há mais de um mês. As pessoas pedem que o autor mude a história, que dote a Perséfone de alguma força, algum amor próprio, que a faça ser “uma pessoa como as outras”. No dia 4 de junho, ele, o autor – Walcyr Carrasco é o seu nome – defendeu a sua história na Revista Época. Disse que ele já foi gordo, e que ainda é gordinho. Contou histórias de seus dias mais gordos. Afirmou que existe preconceito, sim. Nas suas palavras, “Obesidade pode ser uma questão de saúde. Ou de reeducação alimentar. Mas não pode se tornar um problema de rejeição social”. Chegou atrasado, Walcyr. Isso já está devidamente estabelecido na nossa sociedade.
A promessa final dele é que haverá surpresas no final da novela. As gordinhas o agradecerão. Agradecerão o que, Seu Walcyr? Se esta é uma história em que a mocinha “menos favorecida” se ferra a novela inteira para ter alguma redenção totalmente descabida no final, essa história já foi contada algumas vezes. Seguir este caminho é só insinuar de novo que gorda = feia, mas que até as feias podem se dar bem. Não tem surpresa nenhuma aí. Surpresa mesmo seria colocar, na novela das 9, uma personagem gordinha que fosse bem resolvida, que se vestisse bem, que mandasse o sujeito às favas e xingasse um pouco a amiga problemática, os médicos folgados, os homens que a olham com desdém. Daí sim a gente veria alguns clichês serem contrariados, Walcyr. Daí sim a gente se sentiria mais bem representada.
Nota da Vivi: sem falar na questão da profissional “Enfermeira Perséfone”, né? Fica evidente a postura submissa e insegura, até em relação a tia da cantina. Falta de autoestima e profissionalismo em proporções semelhantes. Clichê brabo, amador.