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Coluna da Chris

Coluna da Chris: Academia

 

Vivemos num país (um mundo?) em que estar dentro dos padrões estéticos vigentes é uma obrigação, e não um direito ou uma escolha de cada pessoa. Ousar desafiar este conceito é motivo para críticas, muitas vezes agressivas. Declarar-se feliz assim, então, é pedir para ser desacreditada: “quem escolheria ser gorda se pudesse ser magra?” Curiosamente, essa teoria vai de encontro à outra que diz que “só é gordo quem quer”. Vamos decidir, né, gente? Ou sou gorda porque quero, ou sou gorda porque não consigo ser de outra forma.

Eu nunca fui o tipo de pessoa que faz exercícios físicos. Tive algumas tentativas ao longo da vida, mas sempre desisti por um motivo (preguiça) ou outro (mais preguiça), sempre perfeitamente lúcidos e verdadeiros: a distância… a hora… o cabelo (na piscina, quando tentei a hidroginástica)… os coleguinhas que ficam me olhando só porque sou gorda… o preço… Apesar dessa preguiça toda, eu sempre senti grande bem estar ao fazer exercícios físicos. Todas as vezes que suei o corpinho, ao final pensei, puxa, isso é tão bom, acho que vou fazer mais vezes. Mas a vontade passava rápido, porque era sempre difícil continuar.

Eu nunca quis sequer entrar em academias porque sempre tive preconceito. É. Eu, a gorda, cheia de preconceitos contra a gente fútil que se dedica a trabalhar músculos e gastar calorias em academias. Tanta coisa melhor para fazer! Ler um livro, assistir televisão, tomar banho, comer, dormir, e… isso tudo aí. Tanta coisa! E outra, em vez de academia, poderia andar nas ruas, algo excelente (quando a pessoa consegue fazer isso). Ou então poderia fazer hidroginástica, onde o público é mais parecido comigo (senhorinhas). Então eu juntava o preconceito com a preguiça e basicamente vivi a vida toda sem fazer nada.

Até o dia em que abriram uma academia na esquina de casa e a minha irmã me arrastou para lá (precisava de companhia). E daí eu descobri um monte de coisas que eu não sabia sobre a academia. A primeira e mais importante é que lá não tem apenas pessoas super atléticas que passam a vida toda pensando unicamente na aparência de seus corpos. Lá tem pessoas de todos os tamanhos e todas as idades, e com objetivos diversos. Claro que a maioria da clientela é composta por homens jovens, mas a maioria não é o todo. Não sou nem de perto a mulher mais velha ou mais gorda a estar na academia, e também não sou a mais fraca.

A outra coisa importante que descobri na academia é que ela exige certa disciplina que, para uma pessoa como eu, é necessária. O meu problema em fazer exercícios cheios de liberdade, como andar na rua, é que me incomoda muito a falta de um lugar para chegar. Sair andando para voltar para casa, sendo andar a única finalidade, não funciona. Eu mal chego à esquina e já estou embirrada por saber que vou até ali para voltar para cá, e então para que? Ah, porque tenho que andar, mas bolas! Andar só faz sentido quando a caminhada é para me levar do ponto A ao ponto B. Se o ponto A e o ponto B ficarem exatamente no mesmo lugar, acaba todo meu ânimo.

Na academia eu consegui ter objetivos. Se for dia de musculação, eu tenho seis aparelhos para usar a cada treino, e esse se torna o meu objetivo: usar todos os seis aparelhos, sentindo os músculos se exaurirem em cada um deles. Na bicicleta ergométrica, meu objetivo é pedalar a mais de 90 rpm (nem sempre consigo), no nível 8, por 10 minutos (15 se não for dia de musculação). E na esteira, de longe o meu reduto preferido na academia, o meu objetivo é andar durante meia hora. Faça chuva ou faça sol, não existe ponto A ou ponto B: existe um cronômetro na minha frente (e uma tela de TV, o que não é nada mal) e o meu compromisso pessoal em andar ali durante 30 minutos inteiros, redondos, bonitos, todos os dias. O meu objetivo é zerar aquele cronômetro.

Eu não vou à academia para emagrecer, e sei que às vezes as pessoas tem alguma dificuldade em entender ou mesmo acreditar nisso, mas não importa. Basta-me saber. Tanto é verdade que de fato não emagreci nem um pouquinho nestes últimos meses. Mas eu gosto muito, eu gosto demais de sentir que meu corpo está a cada dia mais forte, mais resistente. A evolução me faz bem, aumenta minha confiança e melhora muito a autoestima. Todos os dias olho para mim, vejo minha aparência lamentável ao chegar em casa – o cabelo emplastrado, a camiseta molhada, as bochechas vermelhas e o suor transformando minha pele em algo aquoso e escorregadio – e penso com orgulho que hoje posso realizar mais coisas do que ontem com este corpo que já me fez tão infeliz algumas vezes e tão absurdamente feliz em outras.

Há um ano, se alguém me dissesse que eu me sentiria assim por frequentar uma academia de ginástica eu só não daria risada porque a simples ideia me irritaria bastante. Mas, outra vez, sem ilusões: a academia é apenas um acessório. O importante mesmo é que, agora, depois de (pouquíssimo mais) de 40 anos vividos, eu finalmente me dei conta que posso amar mais o meu corpo se enxergá-lo como algo além de um mostruário imperfeito para roupas bonitas ou feias, justas ou largas. O meu corpo não existe apenas para ser visto e admirado ou criticado pelos outros.

O meu corpo é o meu templo, e só a mim interessa o formato que ele tem. Fortalecê-lo um pouco a cada dia me dá a real dimensão da sua importância. Porque eu nunca mais quero dizer “tenho cabeça, não preciso de um corpo”. Eu não aceito mais relativizar a importância do meu corpo, tratá-lo com condescendência como se ele fosse a parte coitadinha de mim. Ele não é. Sou inteira: um cérebro, um espírito e um corpo. Amém.

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Coluna da Chris: Já ouviu falar da Mauritânia?

 

A Mauritânia é um pequeno país islâmico situado ao noroeste do continente africano. Ali, pertinho do Marrocos. Eu sei muito pouco da Mauritânia, como o fato de terem sido uma colônia francesa (independentes em 1960), de terem uma população de pouco mais de 3 milhões de habitantes. E que, em algumas regiões desse país, nos lugares mais afastados das cidades, só as mulheres gordas é que tem valor.

Pois é nos confins dessa terra, nas tribos da região do Saara, área onde há seca e fome, que a gordura é não apenas uma questão de beleza, mas também um sinal de prosperidade. Um corpo roliço vale um bom casamento, porque os homens vêem a magreza como um sinal de miséria e doença, e não aceitam se casar com as moças magras. E, neste lugar, o casamento não é apenas uma opção para as mulheres: é o único objetivo da vida delas.

O tamanho do corpo da mulher indica quanto espaço ela ocupa no coração de seu marido. Quanto mais ela espalhar o tapete em que se senta, melhor. Mas, como tudo na vida, engordar requer sacrifícios, e as técnicas de engorda (leblouh) de meninas são verdadeiramente desumanas.

É bom lembrar que não estamos falando de lugares onde empresários abram filiais do McDonald’s. Para engordar na região desértica da Mauritânia não há biscoitos, pães doces, leite condensado ou hambúrguer. Não há bobagens para se beliscar entre as refeições. Mas há leite de vaca e de camelo, há cuscuz e há surras.

As meninas começam a ser engordadas ainda pequenas, por volta dos cinco anos. A engorda pode ser feita em casa ou em fazendas especializadas no assunto. As meninas não podem brincar e correr como os meninos. Ao contrário, ficam sentadas enquanto alguém lhes dá leite para beber em grandes tigelas. As estratégias para convencer as meninas a beber o leite incluem pedaços de madeira apertando seus dedos dos pés: enquanto sentem dor, se distraem e engolem o leite. Se vomitarem, podem ser obrigadas a lamber do chão o que desperdiçaram. Elas choram e se lamentam, mas não tem chance de se libertar.

Depois de se casarem, a luta para manter a forma continua. Nas épocas de seca, tudo é mais difícil, pois a comida é pouca. Resta esperar pelas chuvas, para que os animais cresçam e produzam mais leite. Ou então comprar remédios para engordar. Xaropes, pastilhas, corticoides… sim, corticoides. São vendidos sem receita médica, mas aumentam muito o apetite. E, é claro, as mulheres não praticam qualquer exercício físico, que seria um gasto de calorias arriscado. Com isso, estas mulheres, que passam a maior parte do tempo dentro de suas casas, sentadas, acabam ficando incapacitadas muito cedo. Elas tem apenas gordura, musculatura muito fraca e pouca saúde. Aos 40 ou 50 anos, já não conseguem mais andar. E então vão ocupar o tempo engordando as meninas das novas gerações.

A prática da alimentação forçada resiste e atinge cerca de 10% das meninas da Mauritânia. Nas tribos adeptas, a coisa é simples: mulheres gordas são lindas, e qualquer sacrifício é válido para que elas fiquem e se mantenham gordas durante toda a vida. Não tem discussão ou argumento.

É impossível não me sentir intrigada por uma sociedade em que se dê tamanha importância ao formato do corpo de uma pessoa. Em que a aparência seja mais importante que a substância, e onde as mulheres – sempre elas – sejam submetidas e se submetam a sacrifícios hediondos em nome da aparência física. E daí alguns podem pensar – bom, são tribos no deserto, né? E mais não se diz, porque é politicamente incorreto insinuar que outras culturas sejam “atrasadas”.

E daí, daí a gente liga a televisão e vê o Drauzio Varella no Fantástico entrevistando a mulher anoréxica e a outra que sofre de vigorexia. E vê no NatGeo um documentário inteirinho falando sobre o tabu da obesidade e outro sobre o tabu da magreza extrema. E os trocentos anúncios de remédios naturais, e outros nem tanto, e dietas, e programas de exercícios que vão te ajudar a não ter mais vergonha do seu corpo e a poder vestir tudo o que quiser. E percebe que vive numa sociedade que se preocupa absurdamente com o formato dos corpos humanos. E a gente nem vive numa tribo.

E depois disso a gente desliga a televisão, escova os dentes e dá uma checada no espelho, admirando a silhueta. E então a gente vai deitar, dando graças aos céus porque não precisou nem tomar litros e litros de leite de camelo para ficar mais gorda e nem enfiar o dedo na garganta para se livrar do que ingeriu na hora do jantar. E antes de fechar os olhos pensa, pela milésima vez, que foi muito bom ter se decidido a trilhar o caminho da aceitação do próprio corpo.

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Coluna da Chris: Eternamente Responsável pelo que Cativas

 

Na semana retrasada, Joan Rivers, apresentadora do Fashion Police do Canal E! foi entrevistada por David Letterman. O objetivo era comentar a cerimônia de entrega do Oscar e as pessoas que desfilaram no tapete vermelho. Uma das lembranças que fez questão de trazer à tona foi o encontro com a vencedora do Oscar de melhor canção, Adele. Abrindo os braços para descrever a circunferência de Adele, Joan Rivers fez uma piada a respeito da música “Rolling in the deep” – deveria passar a se chamar “Rolling in the deep with fried chicken”. Disse também que Adele estava muito nervosa com a apresentação que faria logo mais e teria dito “minha garganta, eu não consigo engolir”, ao que ela teria respondido “ah, sim, você consegue!!!” – mais uma vez, abriu os braços em torno do próprio corpo sinalizando que Adele teria o tamanho, digamos, de um barril. Joan Rivers não se incomodou minimamente com a reação da platéia, que suspirou um “ohhh…” de desaprovação e nem mesmo com a expressão constrangida de Letterman, que disse que Adele era uma “lovely lady”.

Em terras tupiniquins, em 2010, alunos da Universidade Estadual Paulista, a UNESP, resolveram criar uma competição extra-oficial durante os jogos InterUnesp. Tratava-se do “Rodeio das Gordas”. Uma garota qualquer, escolhida unicamente por ser gorda, era abordada por um rapaz que puxava uma conversa amistosa, com ares de paquera. Em seguida, segundo uma das testemunhas – e combatentes – do tal rodeio, o sujeito deveria “agarrá-la como fazem os peões nas arenas”. Enquanto a moça lutava para se libertar, os demais competidores riam e gritavam “pula, gorda bandida”. Quanto mais a vítima lutasse, mais o grupo aplaudia. Afinal, touro bom é touro bravo.

A última: em 9 de janeiro de 2008, Preta Gil foi à praia com a sua (então?) amiga Sabrina Sato. Paparazzi registravam tudo. Preta levou um “caldo”, foi derrubada por uma onda. Motivo para muitas risadas, certo? Não fosse o fato de uma revista de fofocas ter publicado matéria intitulada “Sabrina Sato e Preta Gil exibem seus contrastes”. A matéria inteira comparava os corpos das duas. Na capa, uma foto das duas, de biquíni, embaixo de um chuveiro. Um site de humor usou a mesma foto para fazer graça, bastando aplicar uma etiqueta de “vou” em cima da Sabrina, uma de “não vou” em cima da Preta. “Baleia”, riu um jornalista em um blog. Finalmente, algumas semanas mais tarde, o programa Pânico na TV fez uma “reconstituição” do tombo, onde a atriz gorda que representava Preta teve que ser rebocada da areia com uma corda puxada por um trator. Sabrina participou do esquete.

Eu poderia encontrar vários outros casos, estes são apenas alguns dos que me chamaram a atenção. São atos que representam uma cultura. Uma cultura que não aceita os “diferentes”, como se tivesse um monte de gente igual para determinar “o padrão”, o temido, famigerado e excludente padrão. Se só gordos são considerados diferentes? Não. Tem muita gente que é “diferente”. Alguns destes diferentes não tiveram opções, como pessoas que não cresceram muito e ficaram baixinhas. Já outros, e essa é a diferença entre o tipo de crítica que se faz, são “diferentes” porque querem. Assim como eu. Mas bato na mesma tecla de sempre, nem todo gordo é gordo porque quer, ou porque não se importe. E nem toda gorda faz disso uma cruzada na vida, o grito de “posso ser como eu quiser!”. Eu faço e essa sempre foi a minha revolta: deixem-me ser! Eu não engulo bem (pun intended) quando uma amiga diz que sou bonita, mas preciso emagrecer. Mas vamos adiante.

Contra a cultura que busca oprimir e encher de culpa os coraçõezinhos, só há uma saída: a revolução. E a revolução consiste unicamente em se tornar hoje mesmo, agora, uma pessoa capaz de amar o seu corpo, mas não apenas isso. A gente tende a ser complacente quando o assunto é o nosso próprio corpo ou o nosso próprio intelecto.

A revolução de fato consiste em cada um se tornar capaz de aceitar o seu próprio corpo e também o corpo do seu vizinho, do seu amigo, do seu pretê, do seu chefe, daquela pessoa que entrou logo depois de você na fila do banco, e da que chegou antes também. E mais ainda: a revolução genuína também inclui não aceitar que alguém, quem quer que seja, discrimine outra pessoa pelo tamanho do seu corpo, qualquer que seja ele. Protestar contra isso, mesmo sob risco de receber olhares estranhos.

Porque é quando a gente passa a não admitir que certas coisas sejam ditas ou feitas é que existe uma possibilidade, ainda que pequena, de que a pessoa que discrimina se sinta um pouquinho constrangida pelo que disse ou fez. E se cada um dos revolucionários conseguir contagiar uma pessoa, e se cada um dos contaminados conseguir fazer com que um discriminador pense antes de fazer a graça, daí sim estaremos evoluindo. Sem armas, sem guerras: apenas mudando os nossos conceitos, a nossa mentalidade e a nossa maneira de reagir ao que acontece em volta.

“Nesta cultura, não importa o seu tamanho, amar o seu corpo e a sua aparência é um ato de absoluta revolução. Há várias maneiras de fazer isso, que dependem de onde você está na sua jornada pessoal. Escolha não participar de qualquer tipo de conversas negativas sobre aparências. Escolha dizer coisas positivas sobre os corpos de outras pessoas e sobre o seu próprio corpo. Quando por acaso ouvir outras pessoas fazendo comentários negativos sobre o corpo de alguém, responda com frases positivas, ou diga algo como “eu espero ansiosamente para viver num mundo onde possamos ver beleza em todos os corpos”.
Ragen Chastain, “Tiny Acts of Revolution”

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Coluna da Chris: Cirurgia não pode ser um brinquedo na mão da Gordofobia

 

Gente gorda sofre preconceito. Desde sempre, desde que se é criança e algumas amiguinhas não te chamam para as festinhas na casa delas. Outras não querem nem ser vistas ao seu lado. Os meninos nunca te chamam para dançar. E tem os corinhos: gorda-baleia-saco-de-areia (outro dia me disseram que tem uma continuação feia para essa musiquinha, mas eu não conheço e prefiro continuar não conhecendo). Continua sofrendo preconceito na adolescência, na vida adulta. Dizem que até na hora da morte, preparadores de corpos e coveiros tem preconceito. Aí eu digo só de ouvir falar, nunca testemunhei.

O fato é que o preconceito contra pessoas gordas – alguns chamam (e eu gosto do nome) de gordofobia – é um dos raros ainda socialmente aceitos, e em muitos casos é até mesmo estimulado.

Há uma crença de que as pessoas só são gordas porque querem, porque são preguiçosas. Porque comem demais, e isso é imperdoável, principalmente por quem se submete a tantos sacrifícios para manter a silhueta esbelta. Mais ou menos como o sujeito que secretamente sente atração fatal por outros homens, mas se obriga a segurar a onda e manter as aparências. Geralmente é insuportável ver alguém fazer com tanta liberdade algo que você mesmo não se permite. “Como tem coragem de ser gordas, essas mulheres? Quem lhes deu esse direito?”

Bom, em muitos casos, elas mesmas se deram esse direito, e é ditatorial questionar isso. Em outros, talvez a maioria, elas nem se deram direito nenhum, elas apenas não conseguem ser de outra forma. Pode isso, Arnaldo? Olha, deve poder, porque não é possível que tantas pessoas permaneceriam infelizes dentro dos seus corpos se fossem capazes, se tivessem a força necessária para mudá-los. Não é questão de desejar, mas sim de conseguir. Mas e a cirurgia? Por que não fazem uma cirurgia? – perguntarão outros, já me perguntaram alguns.

No primeiro texto que escrevi aqui para o blog, eu falei sobre minhas experiências com os anorexígenos, bem sucedidas até a página 6. O clichê de sempre daí para frente e o final previsível. O que não falei naquela ocasião foi a respeito da banda gástrica que mandei instalar no meu estômago, que está aqui comigo até hoje e que se faz notar, vez por outra, através de câimbras na região abdominal ou de episódios de entalamento. Sabe quando você come um ovo inteiro, com casca? Não, melhor. Um ovo feito de metal. Você o engole e ele pára no seu esôfago. Então. Isso acontece comigo de vez em quando. Não com ovos de metal, que nunca comi, mas principalmente com carne.

Lá por 2006 ou 2007, eu resolvi visitar um cirurgião. Ele me deu duas opções: a banda gástrica ajustável e a cirurgia bariátrica chamada de bypass gástrico. A banda gástrica consiste em “enforcar” o seu estômago com um anelzinho feito de silicone. Esse anel pode ser inflado (o que o faz ficar mais apertado) ou desinflado, a critério do médico. Inflar e desinflar é um procedimento simples (deveria ser) feito através de um portal colocado no seu músculo abdominal. Esse portal é que me faz ter câimbras e às vezes dores no músculo abdominal, do lado esquerdo do meu corpo. É como se fosse um funilzinho instalado ali, a parte que seria aberta no funil coberta por uma borracha, por onde deve entrar uma agulha grossa. Essa peça se liga ao anel de silicone que rodeia o estômago por meio de um canudinho comprido. Basta inserir pela sua pele a agulha da seringa cheia de soro na borrachinha do portal e encher a banda. E ela vai estrangular o seu estômago. Quando você come, a comida pára na parte de cima do seu estômago e daí, dizem eles, você tem a sensação de saciedade (só que não). Depois, lentamente, o alimento vai passando pelo anel, e segue seu curso normal.

Tornando curta uma longa história, eu resolvi colocar a banda em vez de fazer o bypass por alguns motivos: primeiro, porque considerava o bypass perigoso. Pessoas morrem fazendo esse tipo de coisa. Depois, porque o bypass tem alguns efeitos colaterais, tipo exigir reposição de vitaminas constantemente (já que você “perde” um belo pedaço do seu intestino e deixa de absorver muitos nutrientes) e para o resto da vida.

Também porque esse mesmo problema de absorção de nutrientes causa queda de cabelo e enfraquecimento de unhas, o que a minha vaidade não permitia. E, finalmente, porque o bypass realmente te impede de comer, o que eu via como uma verdadeira mutilação, umas algemas que eu iria me impor a troco de… de que, mesmo? Para mim, a banda gástrica era a única cirurgia possível, porque eu não admitia a hipótese de me impor tantos limites assim e ainda ficar com um cabelinho ralo e umas unhas quebradiças.

Fui para a banda. Um dia de internação, uma anestesia geral e acordei já mais magra (auto-imagem é tudo). Durante duas semanas, eu só podia consumir líquidos, em quantidades pequenas. Depois entraram as comidas pastosas. Muito creme de qualquer coisa, muito leite desnatado batido com chocolate light, muito sorvete light. Emagreci, é claro, mas nem precisava da banda para isso. É só passar semanas à base de líquidos não alcoólicos, qualquer um emagrece. Estive no consultório do médico para inflar a banda por três vezes. As três vezes falharam e, olha, não é uma sensação legal ter alguém remexendo uma agulha gigantesca (e dourada, devo dizer, o que achava muito chique) dentro da sua barriga. Em todas as três vezes, tive que ir ao hospital, tomar contraste, fazer o procedimento numa mesa de raio-x para que ele conseguisse acertar a entrada do acesso.

Desisti da banda, embora ela ainda esteja aqui comigo. Ela me tornou menos carnívora, é certo, e mais lenta nas refeições, o que só podem ser pontos positivos. Eu nunca mais consegui comer um bom filé, porque não passa. A sensação de entalamento é muito ruim e a única saída possível é ir ao banheiro e tentar vomitar. Não é uma sensação boa, a gente se sente meio bulímica. Por isso, desisti das carnes que não sejam moídas ou processadas. E comer devagar é uma necessidade, mesmo com a banda desinflada. Desisti da banda, mas sei que um dia vou ter que procurar um gastro para ver se está tudo bem, porque esse anel pode causar erosão do meu estômago, uma coisa meio séria, e também porque episódios constantes de entalamento podem distender o meu esôfago.

Eu sei que muita gente acharia um pequeno preço a se pagar pela magreza. A gente sabe que há gente que pagaria qualquer preço pela magreza. Eu é que não sou capaz. Nem de andar para cima e para baixo tentando inflar essa banda só para me engasgar com ela depois, nem de mandar grampear o meu estômago, costurar meu intestino e ter uma incapacidade física real de ingerir o que quero. Isso me enlouqueceria, faria de mim uma pessoa infeliz e que, além de tudo, se sentiria covarde. Eu me sentiria covarde por ceder, por me obrigar, através do sofrimento, a ter um corpo que outros almejam para mim, mas que não me seduz.

Eu não me arrependo de ter colocado a banda, principalmente porque é reversível, e um dia eu vou tirá-la daqui. Por enquanto estamos em paz. Ela não me incomoda muito, eu não a incomodo em nada. Para mim, a maior prova de que fiz algo tolo é a lembrança da cirurgia. Dois anos antes, tive que fazer uma cirurgia complicada para retirar a minha vesícula gangrenada. Apesar da dor e do desconforto, dos cinco dias de internação, lembro que eu me sentia cuidada, protegida. A cirurgia da banda, ao contrário, fez com que eu me sentisse fraca, pobre, deprimida.

Finalmente, e porque é importante ressaltar, eu não sou contra as cirurgias de combate à obesidade. Acho que elas salvam muitas vidas, e há uma quantidade enorme de pessoas que precisam desesperadamente delas. Torço para que consigam realizá-las rapidamente, de verdade. E que se recuperem logo, e fiquem saudáveis e felizes. Por outro lado, submeter meu corpo a uma cirurgia por vaidade, para me enquadrar, foi apenas brincar com coisa séria. E isso eu não quero mais fazer.

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