Gente gorda sofre preconceito. Desde sempre, desde que se é criança e algumas amiguinhas não te chamam para as festinhas na casa delas. Outras não querem nem ser vistas ao seu lado. Os meninos nunca te chamam para dançar. E tem os corinhos: gorda-baleia-saco-de-areia (outro dia me disseram que tem uma continuação feia para essa musiquinha, mas eu não conheço e prefiro continuar não conhecendo). Continua sofrendo preconceito na adolescência, na vida adulta. Dizem que até na hora da morte, preparadores de corpos e coveiros tem preconceito. Aí eu digo só de ouvir falar, nunca testemunhei.
O fato é que o preconceito contra pessoas gordas – alguns chamam (e eu gosto do nome) de gordofobia – é um dos raros ainda socialmente aceitos, e em muitos casos é até mesmo estimulado.
Há uma crença de que as pessoas só são gordas porque querem, porque são preguiçosas. Porque comem demais, e isso é imperdoável, principalmente por quem se submete a tantos sacrifícios para manter a silhueta esbelta. Mais ou menos como o sujeito que secretamente sente atração fatal por outros homens, mas se obriga a segurar a onda e manter as aparências. Geralmente é insuportável ver alguém fazer com tanta liberdade algo que você mesmo não se permite. “Como tem coragem de ser gordas, essas mulheres? Quem lhes deu esse direito?”
Bom, em muitos casos, elas mesmas se deram esse direito, e é ditatorial questionar isso. Em outros, talvez a maioria, elas nem se deram direito nenhum, elas apenas não conseguem ser de outra forma. Pode isso, Arnaldo? Olha, deve poder, porque não é possível que tantas pessoas permaneceriam infelizes dentro dos seus corpos se fossem capazes, se tivessem a força necessária para mudá-los. Não é questão de desejar, mas sim de conseguir. Mas e a cirurgia? Por que não fazem uma cirurgia? – perguntarão outros, já me perguntaram alguns.
No primeiro texto que escrevi aqui para o blog, eu falei sobre minhas experiências com os anorexígenos, bem sucedidas até a página 6. O clichê de sempre daí para frente e o final previsível. O que não falei naquela ocasião foi a respeito da banda gástrica que mandei instalar no meu estômago, que está aqui comigo até hoje e que se faz notar, vez por outra, através de câimbras na região abdominal ou de episódios de entalamento. Sabe quando você come um ovo inteiro, com casca? Não, melhor. Um ovo feito de metal. Você o engole e ele pára no seu esôfago. Então. Isso acontece comigo de vez em quando. Não com ovos de metal, que nunca comi, mas principalmente com carne.
Lá por 2006 ou 2007, eu resolvi visitar um cirurgião. Ele me deu duas opções: a banda gástrica ajustável e a cirurgia bariátrica chamada de bypass gástrico. A banda gástrica consiste em “enforcar” o seu estômago com um anelzinho feito de silicone. Esse anel pode ser inflado (o que o faz ficar mais apertado) ou desinflado, a critério do médico. Inflar e desinflar é um procedimento simples (deveria ser) feito através de um portal colocado no seu músculo abdominal. Esse portal é que me faz ter câimbras e às vezes dores no músculo abdominal, do lado esquerdo do meu corpo. É como se fosse um funilzinho instalado ali, a parte que seria aberta no funil coberta por uma borracha, por onde deve entrar uma agulha grossa. Essa peça se liga ao anel de silicone que rodeia o estômago por meio de um canudinho comprido. Basta inserir pela sua pele a agulha da seringa cheia de soro na borrachinha do portal e encher a banda. E ela vai estrangular o seu estômago. Quando você come, a comida pára na parte de cima do seu estômago e daí, dizem eles, você tem a sensação de saciedade (só que não). Depois, lentamente, o alimento vai passando pelo anel, e segue seu curso normal.
Tornando curta uma longa história, eu resolvi colocar a banda em vez de fazer o bypass por alguns motivos: primeiro, porque considerava o bypass perigoso. Pessoas morrem fazendo esse tipo de coisa. Depois, porque o bypass tem alguns efeitos colaterais, tipo exigir reposição de vitaminas constantemente (já que você “perde” um belo pedaço do seu intestino e deixa de absorver muitos nutrientes) e para o resto da vida.
Também porque esse mesmo problema de absorção de nutrientes causa queda de cabelo e enfraquecimento de unhas, o que a minha vaidade não permitia. E, finalmente, porque o bypass realmente te impede de comer, o que eu via como uma verdadeira mutilação, umas algemas que eu iria me impor a troco de… de que, mesmo? Para mim, a banda gástrica era a única cirurgia possível, porque eu não admitia a hipótese de me impor tantos limites assim e ainda ficar com um cabelinho ralo e umas unhas quebradiças.
Fui para a banda. Um dia de internação, uma anestesia geral e acordei já mais magra (auto-imagem é tudo). Durante duas semanas, eu só podia consumir líquidos, em quantidades pequenas. Depois entraram as comidas pastosas. Muito creme de qualquer coisa, muito leite desnatado batido com chocolate light, muito sorvete light. Emagreci, é claro, mas nem precisava da banda para isso. É só passar semanas à base de líquidos não alcoólicos, qualquer um emagrece. Estive no consultório do médico para inflar a banda por três vezes. As três vezes falharam e, olha, não é uma sensação legal ter alguém remexendo uma agulha gigantesca (e dourada, devo dizer, o que achava muito chique) dentro da sua barriga. Em todas as três vezes, tive que ir ao hospital, tomar contraste, fazer o procedimento numa mesa de raio-x para que ele conseguisse acertar a entrada do acesso.
Desisti da banda, embora ela ainda esteja aqui comigo. Ela me tornou menos carnívora, é certo, e mais lenta nas refeições, o que só podem ser pontos positivos. Eu nunca mais consegui comer um bom filé, porque não passa. A sensação de entalamento é muito ruim e a única saída possível é ir ao banheiro e tentar vomitar. Não é uma sensação boa, a gente se sente meio bulímica. Por isso, desisti das carnes que não sejam moídas ou processadas. E comer devagar é uma necessidade, mesmo com a banda desinflada. Desisti da banda, mas sei que um dia vou ter que procurar um gastro para ver se está tudo bem, porque esse anel pode causar erosão do meu estômago, uma coisa meio séria, e também porque episódios constantes de entalamento podem distender o meu esôfago.
Eu sei que muita gente acharia um pequeno preço a se pagar pela magreza. A gente sabe que há gente que pagaria qualquer preço pela magreza. Eu é que não sou capaz. Nem de andar para cima e para baixo tentando inflar essa banda só para me engasgar com ela depois, nem de mandar grampear o meu estômago, costurar meu intestino e ter uma incapacidade física real de ingerir o que quero. Isso me enlouqueceria, faria de mim uma pessoa infeliz e que, além de tudo, se sentiria covarde. Eu me sentiria covarde por ceder, por me obrigar, através do sofrimento, a ter um corpo que outros almejam para mim, mas que não me seduz.
Eu não me arrependo de ter colocado a banda, principalmente porque é reversível, e um dia eu vou tirá-la daqui. Por enquanto estamos em paz. Ela não me incomoda muito, eu não a incomodo em nada. Para mim, a maior prova de que fiz algo tolo é a lembrança da cirurgia. Dois anos antes, tive que fazer uma cirurgia complicada para retirar a minha vesícula gangrenada. Apesar da dor e do desconforto, dos cinco dias de internação, lembro que eu me sentia cuidada, protegida. A cirurgia da banda, ao contrário, fez com que eu me sentisse fraca, pobre, deprimida.
Finalmente, e porque é importante ressaltar, eu não sou contra as cirurgias de combate à obesidade. Acho que elas salvam muitas vidas, e há uma quantidade enorme de pessoas que precisam desesperadamente delas. Torço para que consigam realizá-las rapidamente, de verdade. E que se recuperem logo, e fiquem saudáveis e felizes. Por outro lado, submeter meu corpo a uma cirurgia por vaidade, para me enquadrar, foi apenas brincar com coisa séria. E isso eu não quero mais fazer.
Gente magrela também sofre preconceito. Também é discriminada, ouve piadinhas de mal gosto e deboches. Já passei por isso na infância e adolescência. Era naturalmente magra demais, abaixo do peso mesmo, mas era saudável. É genético pois minha filha também é super magra e saudável; provavelmente vai chegar uma fase em que seu peso irá se equilibrar. Atualmente tenho o peso considerado normal e posso dizer que o preconceito é com tudo ou todos que estão fora – acima ou abaixo – do que é considerado padrão na nossa cultura e sociedade. O jeito é se impor, se munir de autoestima e tentar superar as agressões psicológicas da melhor forma possível.
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Oi, Limara, o meu ponto é justamente esse: que as pessoas se gostem e se valorizem independente da forma do seu corpo. Eu falo aqui da autoestima tamanho GG porque esse é o meu caso. No entanto, sem falar apenas em aparência, as pessoas gordas ou obesas não são alvos apenas de preconceito, mas de uma verdadeira guerra psicológica. A nossa sociedade valoriza a magreza, e pode até ser desagradável com quem é muito magro, mas ainda assim, é diferente do que acontece com os gordos. E olha, isso não é só na infância e na adolescência, mas pela vida inteira, até por parte de gente que nunca te viu antes.
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E são tantos os exemplos de bem e mal sucedidas cirurgias…até mesmo aquelas que começam bem sucedidas e depois de muito sofrimento a pessoa volta a engordar, sofrendo dias vezes.
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Anna Christina Saeta Reply:
março 5th, 2013 at 20:28
É sim, Jô. O importante é que as pessoas percebam que a cirurgia não é um recurso para ficar magrinha, e sim uma solução para casos em que realmente a saúde está em risco sério, mas olha só, risco sério não é "porque daqui a 20 anos eu vou ter problemas…". Eu conheço pessoas que engordaram mais de 15 kg para poder fazer a cirurgia. Acho piada.
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Por mais que não seja contra, também nada tenho a favor da cirurgia. Depois de perder uma pessoa da família, por descuido, sem o acompanhamento necessário, fico de pé atrás. Hoje, por coincidência, antes de te ler soube da sobrinha de uma amiga, internada após ter, no fim de semana, comido quase uma jaca inteira tendo feito o bypass em setembro passado. O intestino, "esgarçou", rompeu-se e desde domingo depois de 3 horas na mesa de operação, para limpeza geral está lá na semi intensiva , sem poder tomar nem água, só algodãozinho molhado por 3 dias. Fiquei impressionada, chego, leio tua coluna e não podia deixar passar sem contar mais um "causo", de tantos que a gente sabe. Acredito que as pessoas precisam ser preparadas, antes durante e depois de um procedimento desse porte.
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Amei teu texto!!No meu caso, estou bem num momento de indecisão..Fazer ou não fazer cirurgia??Morro de medo só de pensar! Nem sempre fui gorda, muito pelo contrário, quando criança era magrela e desnutrida. Vivo bem com meu peso, mas claro que bate a depressão qdo vc quer comprar aquele vestido lindo e não entra nele. Fora isso, me sinto bonita sim,me visto bem, sou muito mais vaidosa do que muita magra por aí..O único problema é que as pessoas simplesmente não aceitam que eu seja feliz..e olha q não sou nenhuma obesa, não pareço ter o peso q tenho (n entendo isso!.haha), mas a cobrança pra emagrecer ou fazer cirurgia é enorme..e isso tem tirado meu sono ultimamente..Já não sei se me sinto tão bem como acho..Tb não sei se não é só o excesso de pressão pra emagrecer..q talvez me faça querer agradar os outros..Mas confesso que a possibilidade de não poder comer coisas que amo(carne por exemplo) me aterroriza!!Enfim, ando confusa..as pessoas sabem ser cruéis e te fazer sentir péssima..mas nada que uma boa dose de auto estima não supere..
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@Carol – Oi, Carol, tudo bem? Sabe, leio o que você escreveu e me revejo nisso tudo, porque o caminho da autoestima é uma estrada tortuosa e cheia de altos e baixos. Tem dia que a gente acorda querendo chutar tudo que tem pela frente, e tem dia que a gente se olha no espelho, se acha maravilhosa e diz um grande “dane-se” pro resto do mundo. Você tem todo o direito de ser feliz do jeito que você é, do jeito que você se gosta, magra ou gorda, loira ou morena. E não cabe a ninguém julgar isso, sabe. Uma coisa é certa, a cirurgia não é brinquedo. É importante que você consulte um bom médico, o melhor que encontrar, um médico que seja honesto e que seja capaz de dizer “não” se você não tiver o perfil para fazer a cirurgia (fuja daqueles que operam todo mundo). E outra coisa que eu esqueci de dizer no texto é que a cirurgia não requer apenas um cirurgião experiente, mas uma equipe multidisciplinar que inclua no mínimo nutricionista e psicólogo. Mas pensa bastante, sim, pensa muito, pensa o dobro. Você tem todo o tempo do mundo para pensar. E enquanto isso, seja feliz e ame seu corpo! beijo
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Oi Cris!
Adorei o seu texto, achei bacana a maneira com que você explicou os seus motivos pela opção da banda gastrica, por isso senti meio que uma “obrigação” de contar a minha experiencia com o Bypass Gastrico.
Eu nunca fui magra, mas também nunca fui Goooorda. Sempre fui “fortinha”, mas por questões geneticas a minha tendencia a engordar sempre foi muito forte. Tentei de tudo para emagrecer, exercicios, remedios, terapia. E nada deu certo, mentira, nada deu certo por completo, eu sou uma pessoa muito ansiosa e me defino como imediatista (não sei se o termo existe), então eu queria resultados rapidos, e logico que eles não vem né? E ai eu descontava a minha frustração na comida, e comia, comia comia e me sentia mal por comer, mas não conseguia parar. Em decorrencia disso meu peso aumentava cada vez mais e minha auto estima rolava escada abaixo. Até que um dia minha endocrinologista me sugeriu a cirurgia. Na época eu pesava em torno de 108kg. Sai do consultorio com vontade de chorar, pois na minha cabeça a cirurgia era algo extremo, impensavel. Mas com a mente aberta, pesquisei muito a respeito, conversei com muitas pessoas que operaram, fui em palestras e onversei com alguns médicos a respeito. Até que resolvi fazer a operação. Na época da operação eu estava com 114kg. Achei um cirurgião maravilhoso, que me tranquilizou e me passou uma confiança sem tamanho. Até hoje, agradeço a Deus por ter colocado ele no meu caminho. Fiz minha cirurgia em outubro/2011. No começo foi muito dificil, muito mesmo, me arrependi muito, mas com o tempo isso foi melhorando. Com o tempo aprendi o que a minha nova condição me permite e hoje posso dizer que não me privo de absolutamente nada. Sou capaz de comer de tudo, mas dentro dos meus limites e isso realmente não me incomoda. Sim meu cabelo cai, minhas unhas estão mais fracas e tenho que tomar suplementos vitaminicos pelo resto da minha vida, mas acho que minha vida melhorou tanto que considero essas coisas pequenos detalhes. Ainda não estou no peso considerado ideal para alguem da minha altura, estou com 83,4 kg e tenho 1.67 m. Mas mesmo assim me considero a pessoa mais feliz do mundo. Minha auto estima melhorou em 1000%. Me sinto muito bem todos os dias. o Bypass Gastrico foi a melhor coisa que me aconteceu até hoje, não tenho a menor duvida disso. =)
Enfim, não quero fazer propaganda da cirurgia, ou convencer todo mundo a fazer, só quis deixar aqui o meu depoimento para mostrar que assim como um lado ruim, ela também tem um lado muito bom!
Super beijo e sucesso para você!
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Oi, Priscila, que legal o seu depoimento!
Eu entendo, acredito e concordo que para muita gente a cirurgia é uma boa opção, sim, como foi o seu caso.
Mas as pessoas são diferentes, e por isso as soluções também são. Nada pode ser considerado o melhor para todo mundo, né?
Uma cirurgia eletiva tem que ser sempre estudada, e sempre com apoio de uma equipe multidisciplinar. Sabendo de tudo que espera no pós cirurgico, fica mais tranquilo encarar a batalha. 🙂
Beijo
Chris
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